terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A falsa humildade de um homem que define Deus (2)

 

Os católicos conscientes não podem ficar calados em nome de uma obediência à hierarquia, enquanto uma parte minoritária dessa hierarquia, de uma forma objectiva e verificável, tenta minar os fundamentos filosóficos e racionais da doutrina milenar da Igreja Católica.

A interpretação que o ateu Eugénio Scalfari faz da sua entrevista ao cardeal Bergoglio enquanto Papa, não pode ser considerada pura subjectividade do entrevistador. Seria estúpido que assim a considerássemos. Há elementos da interpretação de Scalfari que são apoiados objectivamente por opiniões e declarações do cardeal Bergoglio: por exemplo: a declaração do cardeal segundo a qual “Deus é o espírito do mundo”.

Quem leu alguma coisa de filosofia sabe bem o que essa definição de Deus significa. Mas o cardeal, agora na sua qualidade infalível de Papa, tem a possibilidade de infalivelmente dizer que “Deus é o espírito do mundo”, e pode inclusivamente e de um modo infalível “abolir o pecado”como escreveu o ateu Scalfari.

Muitos católicos dizem que o cardeal Bergoglio e os seus sequazes luciferinos não podem alterar a doutrina da Igreja Católica.

Para além de uma ilusão colectiva que decorre da ambiguidade da comunicação do cardeal Bergoglio, alguns desses católicos já estão em estado de negação perante a realidade. A verdade é que o cardeal Bergoglio pode contribuir para alterar decisivamente a doutrina da Igreja Católica — e já o está a fazer — através da omissão perante a prevaricação moral, ambiguidade na comunicação, fazendo com que os costumes do mundo se entranhem na prática católica (a práxis revolucionária) que, por sua vez e com o decorrer do tempo, irão exigir a reestruturação da teoria e da doutrina da Igreja Católica. É a práxis que irá alterar a doutrina; é esta a intenção do cardeal Bergoglio: o fundamento ideológico do conceito de “alteração da teoria pela práxis” é marxista.

Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento da História das Ideias refuta racionalmente Scalfari e o cardeal Bergoglio. Por exemplo, o pecado não é — ao contrário do que diz Scalfari — “um conceito eminentemente teológico”, mas antes existe em qualquer sociedade desde os tempos mais primordiais através do conceito de “tabu”. O pecado é o tabu das sociedades primitivas reformulado à luz da diferenciação cultural que o Cristianismo nos trouxe, diferenciação cultural essa que permitiu a civilização europeia e cristã. Como escreveu o filósofo Leszek Kolakowski (que era ateu e se converteu ao Cristianismo) acerca do conceito de “pecado”:

“Não se trata do medo da vingança (de Deus), mas sim um sentimento de receio respeitoso perante a própria acção que perturbou a harmonia do mundo, um receio que não resulta do desrespeito de uma lei, mas sim de um tabu...O tabu é tanto o pilar inalterável de qualquer sistema moral viável como também uma parte integrante da vida religiosa; por isso, o tabu constitui uma ligação necessária entre a veneração da realidade eterna e o conhecimento do bem e do mal... A cultura consiste num cânone de tabus ou, dito de outra maneira, uma cultura sem tabus é um círculo quadrado.”

Portanto, o que Scalfari defende (e atribui também essa defesa ao cardeal Bergoglio), é a mudança dos cânones de tabus — é a mudança da cultura; é a mudança do tipo de pecado: o pecado continuará a existir e existirá sempre como sempre existiu desde que existe a espécie humana: do que se trata aqui (Scalfari) é de redefinir o que é pecado e o que não é pecado, o que é tabu e o que não é tabu.

A ideia do ateu Scalfari (que parece merecer a benevolência do cardeal Bergoglio) é o de transformar o pecado, não como um conceito que é objecto da consciência humana individual (ética), mas antes como um conceito que reúne os tabus controlados e impostos pela polícia (totalitarismo). A ética desaparece totalmente e é integralmente substituída pelo Direito Positivo. E quando a ética é restringida ou reprimida pelo Direito Positivo, estamos perante um sistema totalitário — seja este marxista ou neoliberal de tipo Hayek.


A interpretação dos 10 Mandamentos que o ateu Scalfari faz não tem em conta a doutrina de Jesus Cristo. Como convém ao ateu, ele transporta a lei de Moisés directamente do tempo do Exodus para o século XXI sem ter em conta a mensagem dos Evangelhos de Jesus Cristo. Tudo isto é intelectualmente desonesto, degradante e confrangedor. Questiono-me: ¿como é que indigentes intelectuais, como este, têm acesso privilegiado aos me®dia? ¿Como foi possível que o cardeal Bergoglio, na sua condição de Papa, tivesse dado uma entrevista a um ignaro deste calibre?!

O ateu Scalfari escreve o seguinte acerca do cardeal Bergoglio:

“Mas ainda não vimos até hoje, um Papa que abolisse o pecado. Um Papa que fizesse da pregação evangélica o único ponto fixo da sua revolução, ainda não apareceu na História do Cristianismo.

Esta é a revolução de Francisco que deve ser analisada cuidadosamente, sobretudo depois da publicação da exortação apostólica Evangelii Gaudium, onde a abolição do pecado é parte mais perturbadora de todo o documento apresentado recentemente.”

Valha-nos Deus e a Lógica! ¿Como é possível uma qualquer pregação de uma qualquer ética (porque os Evangelhos têm uma componente ética fortíssima!) sem uma hierarquia de valores, hierarquia essa que se escora em um cânone de tabus (um cânone de pecados)?!! ¿Como é que podemos definir o que é bom sem simultaneamente definir o que é mau?

Escreve o ateu Scalfari acerca da entrevista que o cardeal Bergoglio lhe concedeu:

“Francisco aboliu o pecado servindo-se de dois instrumentos: identificando o Deus cristão revelado por Cristo com o amor, a Misericórdia e o perdão. E depois atribuindo à pessoa humana uma plena liberdade de consciência.”

Pelo menos desde S. Tomás de Aquino (século XIII) que a Igreja Católica atribuiu oficialmente à “pessoa humana uma plena liberdade de consciência”.

O argumento é non sequitur: não se segue que atribuindo à pessoa humana uma plena liberdade de consciência se possa abolir o pecado, pelas razões aduzidas acima: não se pode abolir a culpa humana, porque a culpa é inerente à natureza humana. E não se podendo abolir a culpa, não se pode nunca abolir o cânone de tabus (o pecado): o que se pode fazer é mudar o cânone de tabus. Por exemplo, pode passar a ser pecado ir ver uma tourada, mas deixar de ser pecado fazer um aborto. Mas o pecado (o tabu), considerado em si mesmo, nunca deixará de existir. O que falta saber é se o novo cânone de tabus que o ateu Scalfari e o cardeal Bergoglio defendem é minimamente racional e corresponde a uma hierarquia racional de valores.

Eu, como todos os católicos sem excepção, tenho o dever e até a obrigação de julgar — no sentido de “fazer um juízo crítico” — a acção do cardeal Bergoglio enquanto Papa. Os católicos melhor informados em teologia e filosofia têm a obrigação de fazer essa análise e de a tornar pública, para que todos os católicos possam ter acesso à informação que permita um discernimento livre. Não basta que o cardeal Bergoglio diga que “a pessoa humana tem uma plena liberdade de consciência”, e depois trabalhe afanosamente para que o juízo critico dos católicos melhor informados seja censurado e não seja tornado público.


Ficheiro PDF deste verbete

Ficheiro PDF do artigo de Scalfari

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