segunda-feira, 22 de setembro de 2014

¿O que é um intelectual?

 

A palavra “intelectual” tem uma conotação marxista, mas reduzi-la a essa condição é um erro.

Talvez por isso é que José Gil diz que “já não há intelectuais”. Mas “intelectual” não é a mesma coisa que “intelectualismo”; e quando se confundem os dois conceitos, os intelectuais desaparecem de facto, como é óbvio. “Intelectualismo” ganhou um sentido pejorativo como uma tendência para uma especulação ideológica (racionalismo) sem aderência à realidade; ou seja, o intelectualismo opõe-se ao pragmatismo. Neste sentido de “intelectualismo”, hoje é politicamente incorrecto ser “intelectual”.


O problema é a definição de “intelectual”. Podemos encontrar uma definição de intelectual em um qualquer dicionário, mas trata-se apenas de uma definição nominal (por exemplo: “pessoa dada ao estudo; pessoa de grande cultura”), e não de uma definição real 1. Para uma definição real de “intelectual”, temos que partir de dados da experiência, ou seja, temos que partir da experiência que temos, ou da que constatamos de forma intersubjectiva, em relação a determinadas pessoas.

Podemos começar por laborar em uma definição negativa de “intelectual” (aquilo que um intelectual não é). Por exemplo, um burro carregado de livros não é um intelectual; uma “pessoa dada ao estudo” não é necessariamente um “intelectual” — porque bastaria decorar o dicionário inteiro para se ser “intelectual”.

De modo semelhante, nem toda a gente que trabalha em ciência é cientista propriamente dito: há os “cientistas trabalhadores” que, por exemplo, quando utilizam a equação de Schrödinger abstraem-se do que ela significa e apenas a utilizam de uma forma prática nos seus trabalhos. E depois há os “cientistas criadores”, ou propriamente ditos, que são os verdadeiros “intelectuais da ciência” (embora o intelectual não se reduza à área da ciência), em relação aos quais o sentido intuitivo da equação de Schrödinger está presente quando lidam com ela.

Portanto, chegamos a uma primeira característica do intelectual: a criação. Um intelectual é uma pessoa que cria algo, seja nas artes, seja na ciência, seja na filosofia, etc.. Um intelectual é um criador.


Mas um intelectual não é apenas um criativo, detentor de um “pensamento divergente”: também deve conciliar a criatividade com o “pensamento convergente” (a inteligência), e aqui está a grande dificuldade na classificação do “intelectual”. Ao pensamento divergente do criativo deve-se associar a capacidade crítica da inteligência que permite identificar e eliminar intuitivamente as ideias sem qualquer sentido real. Por isso é que o tradicional intelectual marxista não era de facto um intelectual; e por isso é que, em certo sentido, Julien Benda tinha alguma razão quando se referiu à “traição dos intelectuais” — porque de facto não o eram.

Portanto, um intelectual deve conciliar o pensamento divergente, por um lado, e o pensamento convergente, por outro lado; deve ser criativo mas com um apurado sentido crítico.


Chegamos apenas a uma aproximação de uma definição (uma noção) de “intelectual”, porque o “ser criativo” e o “apurado sentido crítico” pode ser relativizado pela subjectividade de quem faz um juízo de valor. Ou seja, pode haver quem considere, por exemplo, o Zézé Camarinha como sendo um intelectual: é criativo, é pragmático, e não é propriamente burro. Logo, segue-se que o Zézé Camarinha é um intelectual. ¿Será?

Ao Zézé Camarinha, para além da criatividade, do pragmatismo e da inteligência que ele possa ter, falta-lhe a cultura para ser intelectual — “cultura” aqui entendida como “cultura individual”, que difere de “cultura antropológica”, de “cultura popular” e de “cultura de classe”. A verdadeira cultura individual está aberta a todo o tipo de culturas — embora de forma crítica. O acriticismo é sinónimo de incultura.

Enfim, poderíamos definir o intelectual da seguinte maneira:

Um intelectual é um criador dotado de uma grande inteligência, de uma notável cultura individual caracterizada por um forte capacidade crítica, e de uma grande experiência de vida (é muito difícil encontrar um intelectual com 30 ou 40 anos de idade, por exemplo).

Alguns exemplos de intelectuais portugueses recentes: Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho, José Pacheco Pereira. Dos mais antigos do século XX, poderíamos falar em Fernando Pessoa, por exemplo, ou em Almada Negreiros. Estes são intelectuais propriamente ditos.

Nota
1. As definições reais são as que resultam das características invariavelmente observadas a partir dos dados da experiência, ao passo que as definições nominais assentam numa convenção prévia (por exemplo, os sinónimos de um dicionário).

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