domingo, 7 de dezembro de 2014

A origem da família, da propriedade e do Estado – Engels (parte 2)

 

Os dois trechos seguintes marcam o essencial do livro de Engels “A origem da família, da propriedade e do Estado”.

“A monogamia não aparece na História, portanto, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimónio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre sexos, ignorado, até então, na Pré-história.” [página 86]

Em primeiro lugar, Engels parte do princípio segundo o qual, na Pré-história, não havia nem “conflito entre sexos”, nem “escravização de um sexo pelo outro” — mesmo que partamos da suposição (errada!) de que “monogamia” significa “conflito entre sexos” e “escravização de um sexo pelo outro”.

homem das cavernasOra, não há nenhuma evidência ou prova documental histórica que nos demonstre que, na Pré-história — daquilo que é chamado por Engels “matrimónio por grupos” ou da “família sindiásmica” — havia uma harmonia entre o homem e a mulher que não tivesse ou não pudesse existir com a monogamia. Engels especula. O problema da análise da Pré-história é o de que, em geral, não existe documentação escrita que alicerce as nossas crenças actuais acerca desse passado.

Engels parte do princípio do “bom selvagem” de Rousseau que corresponde a um certo romantismo prevalecente no século XIX e princípio do século XX, que apelava para a existência uma Idade de Ouro em um passado remoto (também, por exemplo, com Júlio Evola), em que o homem e a mulher viviam em um Jardim de Éden bíblico. Vemos aqui, claramente, o gnosticismo cristão de Engels.

sarkozy carla bruniParece claro que antes do “aparecimento” da monogamia — se é que a monogamia “apareceu” e não tivesse sempre existido, consoante as culturas e de uma forma mais ou menos residual —, ou seja, nos tempos pré-históricos, a vida da mulher (e a do homem) era muito mais difícil do que a dos tempos da História — basta verificarmos a idade média de vida do homem pré-histórico constatada através de análise de fósseis.

A figura do homem das cavernas que puxa pelos cabelos da mulher parece muito mais consentânea com a realidade do que o panorama idílico que Engels constrói em torno das relações primitivas entre o homem e a mulher. O problema é o de saber se esse homem das cavernas desapareceu — e parece-nos que não: as diferenciações culturais, principalmente com o advento do cristianismo, “domesticaram” (até certo ponto) o selvagem actual; mas não o eliminou, porque estamos a falar da natureza humana que não pode ser alterada nos seus fundamentos.

Engels recorre à especulação acerca de um suposto passado paradísico utópico — tal como fez Rousseau, que por sua vez se baseou no mito de Adão e Eva e no mito do paraíso bíblico — para justificar a possibilidade da alteração dos fundamentos da natureza humana, rumo a uma nova utopia do futuro que constrói um paraíso na Terra. E por isso é que Engels é um gnóstico cristão, na linha de um Joaquim de Fiore, por exemplo, ou de um Frei Bento Domingues.

O problema do estudo da Pré-história é o problema da análise do Tempo — na medida em que não há documentos escritos.
O Tempo é uma categoria da percepção (Kant). O tempo requer uma consciência que regista a passagem dos acontecimentos (a passagem do tempo); e se esse registo da passagem do tempo não é gravado em documentos escritos, a alienação da percepção do tempo justifica assim a especulação de Engels.


“A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos.

Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na História coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino.”

Esta frase de Engels é extremamente venenosa, do ponto de vista ideológico e cultural: ela está na base da guerra cultural que hoje assola o Ocidente; é nela que assentou a evolução do feminismo radical politicamente correcto e da actual negação radical da natureza humana.

Desde logo, Engels não poderia saber, quando escreveu aquilo, que na espécie humana do Neanderthal (que desapareceu há cerca de 30 mil anos), a mulher ia à caça com o homem e a prole (os filhos) eram abandonados à sua sorte no acampamento. Estudos realizados a fósseis de crianças da espécie do Neanderthal comprovam uma sub-alimentação endémica — o que não acontecia com o homo sapiens da Pré-história. Na espécie do Neanderthal não existia “divisão do trabalho” entre homem e mulher, e essa foi uma das razões por que a espécie Neanderthal acabou por se extinguir.

Em segundo lugar, mesmo que, de forma absurda, consideremos os papéis sociais ditados pela Natureza como “divisão do trabalho” (a mulher dá à luz, amamenta — o que o homem não pode fazer!), não se percebe como Engels possa defender que esse “antagonismo entre o homem e a mulher” não tivesse existido “antes da monogamia” (supondo nós, erradamente, que a monogamia não existia na Pré-história!) senão através da total anulação do indivíduo enquanto tal — o que é uma impossibilidade objectiva, na medida em que Engels reduz a sociedade humana (pré-histórica ou não) a uma espécie de formigueiro.

O cenário idílico que Engels tem da Pré-história é contrariado pelo comportamento dos símios superiores — que dizem os darwinistas serem geneticamente próximos do homem. O macho gorila ou chimpanzé é ciumento, violento e polígamo; ou seja, não há nenhuma razão objectiva para acreditar que as espécies humanas anteriores ao homo sapiens tivessem sido muito diferentes da dos símios superiores. Não se trata aqui de “divisão de trabalho”: trata-se, em vez disso, da supremacia do instinto sobre a razão, no caso dos símios e do homem primitivo. Não há nenhuma razão suficiente para crer que o homem pré-histórico não fosse ciumento, violento com a mulher e polígamo. Nenhuma.

Foi através das sucessivas diferenciações culturais — por exemplo, com a cultura grega que aprendeu a controlar o Thumos em circulação na sociedade através do exercício da prudência e da razão; com a cultura romana que concedeu grande liberdade à mulher; e sobretudo com o Cristianismo primordial da Antiguidade Tardia que colocou a mulher como um ser igual ao homem perante Deus — que o instinto foi cedendo lugar à razão.

É através do exercício da razão que o instinto humano pode ser controlado — e isto aplica-se a homens e mulheres. Paradoxalmente, o irracionalismo volta a estar na moda, e por isso é que as ideias de Engels são agora recuperadas pela política europeia. E grande parte desse irracionalismo é imposto actualmente por uma determinada predominância cultural da emoção sobre a razão que acompanha o trajecto de uma progressiva influência do feminino na nossa sociedade.

A origem da família, da propriedade e do Estado – Engels (parte 1)

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